Shambhala e o Horizonte da Utopia segundo Gabriel Caetano

Marco Antônio Vieira 

                           Uma pequenina luz brilhando incerta no meio de nós…luz que vacila, e que não ilumina apenas brilha e brilha, não na distância, mas aqui no meio de nós

                                                   Trechos do poema Uma pequena luz de Jorge Sena 

A Utopia de Thomas Morus e o Epistemicídio Calculado do Outro da Colonialidade 

Em 1516, Thomas Morus (1478-1535) publica Utopia. Etimologicamente, u-topos significa “lugar nenhum”.  Ilha-reino imaginário, projeção idealizada de um território em que se possa romper com as mazelas de um mundo atravessado pela fome e pelas injustiças que grassavam pela Europa renascentista. 

O surgimento do texto de Utopia se dá contra o pano de fundo do mercantilismo marítimo que se encontra na origem da lógica predatória, exploratória e fundamentalmente escravagista que marcará o capitalismo. 

A genealogia eurocêntrica da branquitude patriarcal heteronormativa e cisgênera encontra na idealização inacessível e inalcançável de um lugar inexistente o antídoto para o veneno de uma cultura corrompida. Imaginar o impossível se desenha à medida em que o mundo real se torna crescentemente inaceitável. 

O horizonte da utopia emerge então como pharmakon ( DERRIDA, 2005), a um só tempo antídoto e veneno, e é esta paisagem, ambivalente e oscilatória,  do século XVI colonialista, que aqui se evoca para a concepção de Bosque de Shambhala de Gabriel Caetano. 

Em Calibã e a bruxa- mulheres, corpo e acumulação primitiva, Silvia Federici (2021) habilmente demonstra como a transição do feudalismo para o capitalismo- encarnado a um só tempo pelo mercantilismo marítimo e pela cultura da propriedade privada e acúmulo de riqueza-  implicou o apagamento sistemático e metódico de um mundo governado por uma outra relação com o papel das mulheres e, portanto, com um mundo estruturado a partir de relações nitidamente distintas naquilo que concerne à estrutura social, política e econômica da Europa. 

A instrumentalização discursiva do cristianismo revelou-se fundamental para este mundo separatista e excludente, assumidamente necropolítico (MBEMBE, 2018) em suas estratégias de extermínio dos povos originários e do desterro e exploração desumana e violenta das populações africanas, soterrando não apenas as crenças e gnose (saberes)  de ancestralidades pré-ameríndias e africanas mas igualmente todo um legado pagão pré-cristão que sobrevive na cultura europeia medieval, em que as mulheres detinham segredos e fórmulas de cura e de encantamento do mundo. 

Em larga medida, a supremacia masculinista que sucede o movimento de  apagamento desse mundo que se materializa na caça às  bruxas e tudo o que seu universo comporta como ameaça à hegemonia patriarcal, branca, eurocêntrica, protocapitalista e colonialista, depende da substituição de um sistema de saberes por outro. 

O selvagem e o demoníaco são assim aproximados pelo discurso de perseguição dos vestígios de uma ordem que não deveria subsistir para que as pretensas e falaciosas universalidade, superioridade e neutralidade do homem branco europeu se pudessem forjar e sustentar a subalternização e paulatina conversão de todas as manifestações da alteridade a ponto da aniquilação se suas histórias, doravante tidas como ilegítimas, sacrílegas, pecaminosas e heréticas. 

O Bosque de Shambhala comunga deste mundo encantado, que precede a cisão capitalista que marca a empresa colonial. Que se o aproxime, ao mesmo tempo em que se o distinga, das ressonâncias do utópico do texto de Morus, assim como se o compreenda contra o fundo de interpretação em que marxismo e feminismo se entretecem na tecitura textual proposta por Silvia Federici é o fio que amarra a leitura que aqui se oferece do mundo mágico que Gabriel Caetano instaura e evoca a partir das personagens que sua artesania dá a ver. 

Esta mostra não se poderia conceber apartada da paisagem teórica que ora se desenha, em que o Bosque de Shambhala transcende as fronteiras do misticismo de uma “nova era” e decididamente denuncia e descortina, por meio da eleição de sua temática e de seus processos, o que o desencantamento do mundo em verdade oculta, a saber, uma história de violências simbólicas que compreendem desde a caça às bruxas na fronteira que marca a passagem do Medievo para a Renascença, o extermínio indígena, a escravidão de populações racializadas, a destruição e esgotamento dos recursos naturais, a perseguição das dissidências sexuais e das desobediências de gênero em nome do triunfo da hegemonia patriarcal que sobrevive agonizante e vampiresca na cultura neoliberal, cuja existência só se sustenta uma vez que tudo o que a ela se opuser for violentamente apagado, silenciado, soterrado, enterrado. 

O Bosque de Shambhala, segundo a visão de Gabriel Caetano, ergue-se então como uma nova utopia que acaba por apontar para o assassinato de vidas, culturas e saberes, o que se entende por epistemicídio – a morte programada do conhecimento contra hegemônico. 

Estas criaturas míticas e místicas clamam por reparação e por restituição. É preciso saber ouvir o que têm a dizer: murmúrios, ruídos, rumores em línguas perdidas, idiomas e dialetos esquecidos. A aparente estranheza de seus corpos é o limite do entendimento que a tradução ao mesmo tempo que autoriza, veda e interdita. 

Outridade Shambhala, palavra que em sânscrito significa: “lugar de paz, felicidade, tranquilidade”. Lugar vedado pela empresa da dominação patriarcal. 

O Bosque de Shambala como essa “Pequena Luz” de Reparação e Restituição 

O Bosque de Shambhala surge como um esforço e exercício que convulsiona temporalidades, espécie de aventura em que se imbricam a arqueologia e a poesia. 

Gabriel Caetano infringe a fronteira imposta pela cortina invisível, ainda que sólida, que separa este mundo inventado pela violência colonialista e um mundo encantado de que nos chegam apenas os rastros e indícios. 

Assim, a minúcia artesanal que o artista emprega na confecção destes seres imaginários, criaturas que habitam o interior das florestas e cuja visão nos é, no mais das vezes, interditada, converte-se em uma espécie de caminho, e o que é o “método”, senão o caminho ou técnica que permite que se possa chegar aonde se quer? 

É preciso que a materialidade que comporá os bonecos de Shambala possa absorver na carne de seus corpos forjados pelas mãos do artífice a antiguidade ancestral de um tempo em tudo geológico, tempo de lentidões milenares, que a “técnica” aqui se aproxime mesmo de uma espécie de feitiço ou bruxaria, que a floresta e o bosque possam fornecer ao artista/bruxo os elementos que invocarão aquilo que a voracidade colonial desejou apagar: a monstruosidade mesma que se opõe e contrapõe à falsa harmonia imposta às expensas da violação do outro que se demoniza para que melhor se o possa saquear. 

Os membros, antes decepados, as vestes, outrora rasgadas e rotas, os olhos que foram arrancados, agora precisam ser restituídos. 

É a visão cega da intuição que tudo enxerga que deve guiar os gestos que fazem surgir da escuridão dos tempos A parteira, Florbela, Benedetta, Klauss, Chamunda, a senhora do pântano, Ur, the rat hunter, Vavalush, Conde de Lumiares, Raimundo Erval, o ovo filosofal, a costureira, Bestower of the Seeds, a raizeira, o saxofonista, elemental, a benzedeira, Li, Ken e Kaliya, a tecelã.

Não à toa, veem-se personagens que tecem, tramam, fabricam, fiam e bordam um outro mundo que possa reparar, ainda quem em um plano imaginário, as violações, feridas e fissuras que a hegemonia da branquitude patriarcal impuseram em nome do progresso e acúmulo do capital. 

Estas personagens, a um só tempo delicadas e fortes, desafiam a lógica e a racionalidade cartesianas que extirparam do mundo o sonho e as potências desestabilizadoras e criativas de um universo que mais que nunca se assemelha a uma ilha-reino imaginado e imaginário, o refúgio para um outro amanhã, espécie de sinônimo para o utópico, o refúgio, o esconderijo deve assim manter-se, sob pena de que se esfacele a magia onírica que o sustenta. 

O Bosque de Shambhala é antes a sugestão de um mundo possível dos sonhos contrahegemônico que a afirmação de uma salvação ou redenção pavimentadas pela criação de Gabriel Caetano. É antes a permissão para o sonho do que a cessão indolor e imediata ou imediatista que a aquisição monetária que o capitalismo celebra e cujo sentido se esvai no ato da compra. 

Adquirir os bonecos de Shambhala não se pode confundir com de modo algum com a experiência íntima que sua confecção comporta para a interioridade do artista, sua poiesis como fabulação de um mundo que o artista tece com as personagens cuja inspiração se irmana de fato ao sopro divino e mitopoético que anuncia, por meio da palavra, o nascimento de bonecos que se injetam de vida, animados como seres cujos corpos são autônomos, uma vez que se os batiza. 

As personagens de o  Bosque de Shambhala sussurram em línguas  ressuscitadas  e incompreensíveis para o mundo instaurado pela ordem do capitalismo patriarcal, línguas que se confundem musicais, à maneira de poemas acesos na noite dos tempos, prometendo reparação e restituição e soprando em nossos ouvidos, à maneira de luzes que tremem ao vento, “não vão nos matar agora” ( MOMBAÇA, 2021), o apocalipse que se anuncia nos céus plúmbeos e pesados que cobrem a terra apontam para o fim do mundo como o conhecemos e as criaturas trazidas à vida por Gabriel Caetano já o entenderam há tempos atrás, por isso enfrentam  misteriosamente afrontosos o abismo que o colapso do sistema colonial e sua sobrevivência neoliberal representam para o momento sombrio e melancólico que este fim finge ignorar. 

O Bosque de Shambhala guarda assim o segredo de uma ilha-reino no meio da floresta, espantosamente subversivo em suas ressonâncias políticas de [re]encantamento do mundo utópico das herdeiras e herdeiros das bruxas, de suas palavras mágicas de restituição e reparação de negros, indígenas, de corpos dissidentes e desobedientes do sistema sexo-gênero, de um mundo mítico, mundo da utopia possível e poética, fabricação de um artista que venera as criaturas, seres e entes do interior de uma floresta situada no centro de um país que antes de nós possuía um nome que não mais se conhece, que talvez nunca se soube, nome que não se saberá. 

Pronunciar este nome inaudível é o mistério do sopro secreto dos bonecos que povoam o Bosque de Shambhala segundo Gabriel Caetano: silêncio eloquente e atordoante: “lugar de paz, felicidade, tranquilidade…”. 

Palavras que se esqueceram na boca das bruxas que se queimaram e arderam, manchando os céus de chumbo do passado que nos assombra.  

Referências:

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução de Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2021

MBEMBE, Achille. Necropolítica- biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1, 2018  

MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro:  Cobogó, 2021

MORUS, Thomas. Utopia. Tradução de Márcio Meirelles Gouvea Júnior. Belo Horizonte: Autêntica, 2019

Acesse a exposição Bosque de Shambala

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